Na década de 60, aos domingos, as famílias da pequena e média burguesia paulistana (como a minha) iam aos cinemas no centro da cidade: Marrocos, Metro, República, Ipiranga, Marabá. Ia-se passear no centro velho da cidade, almoçava-se no restaurante Leão do Olido na av. São João próximo à Praça do Correio, no Papai na Praça da Sé, no Carlino da Vieira de Carvalho, ao lado de O Gato Que Ri no Largo do Arouche; no Giordano da Brigadeiro Luis Antonio com Viaduto Maria Paula, no Itamaraty (caríssimo este, juízes, promotores, advogados, a fina flor do Largo São Francisco), no Guanabara do Anhangabaú, aliás tanto este como o Brahma em plena Sampa (Ipiranga com São João) foram “revitalizados”, assim como o Ponto Chic – onde inventaram o bauru – originalmente no Largo Paissandu. Já o Sujinho, o Morais, o Bar das Putas são produções bem mais tardias ocorridas a partir de 70 – vigorava a moda de “ir ao povo”, segundo Roberto Schwarz, o intelectual engajar-se, Nara Leão & Zé Keti.
Mas essa época não vale, quero mais é lembrar a São Paulo da boate Oásis, o João Sebastian Bar, a primeira Baiúca, o primeiro Djalma: não eu, os lugares que meus pais frequentavam. Estas são as memórias não ficcionalizáveis, aos 10 anos nossa cabeça é como uma tela em branco que tudo absorve tal como vem, sem retoques: sem emoções, sem pré-julgamentos, sem preconceitos - são memórias não retificáveis, inegociáveis: primeiras impressões duma São Paulo definitiva.
Porque a década de 60? Porque foi quando, ainda criança, lancei o primeiro olhar inteligente para fora de mim, em direção ao mundo exterior, e este devolveu o olhar em reconhecimento. É o equivalente mais próximo que tenho de “realidade” e “verdade”. Por isso tais lembranças são indeléveis. Brasília acabara de ser inaugurada, passar as férias no Guarujá era the must, especificamente no Sobre As Ondas, acabavam de sair as primeiras kombis – meu pai tinha uma verde e branca e dois fuscas – ocorria Jobim, Vinícius e os “óculos Ronaldo”, Aída Curi acabara de ser assassinada, São Paulo ingressava na modernidade ainda com um pé no passado, mixava bondes e cadilacs, a cavaleiro de dois tempos. (E papai era decorador de Jânio Quadros, Tutu e Pedroso Horta: entendem o que quero dizer? Memórias indescritíveis, inacreditáveis).
À nossa disposição, dois mundos, dois universos, daí a precisa compreensão do presente – por experiência e de fato, pelo que nos contavam e líamos e víamos simultaneamente – de como iria virar a História: o mundo era aquele lugar onde a gente se aventurava pessoalmente. Quando completasse 18 anos. Ou antes.
Li no blog dum escritor amigo, Nilo Oliveira, que é de Londrina, que sou a única paulistana que ele conhece, não é engraçado? Para ele, todo mundo que mora em Sampa ou veio de ou vai para outro lugar, jamais é autóctone!Se este é um ponto de vista válido, deve ser porque Sampa não tem autoconsciência do próprio cosmopolitismo, seu universalismo, condição “sine qua non” para ser única em todo mundo (atroz é o provincianismo burro da sua elite).
Voltando a Gay Talese: essa autoconsciência, NY mantém plenamente não só desde os anos 60, mas desde sempre: cada nova iorquino, um cidadão do mundo (não sei, mas pressinto que não tem muito a ver com o fato de ser o centro do Império, é terrivelmente outra coisa a que não sei dar um nome). Oi, Nilo, mas é isto que sinto por me saber paulistana, uma cidadã do mundo, daí sua impressão de eu ser a única. Mas nunca é tarde para esta porra desta cidade retificar um equívoco que já dura 456 anos. (Já o Mirisola não vale: é o provinciano mais mundano que eu conheço, um mix absurdo de genialidade e anarco-analfabetismo emocional, o cruzamento improvável de cigano com paulichão de chinelo, cruzes! Mas pensando bem, ele só seria possível em São Paulo)
E por esta – sobretudo esta, este provincianismo estapafúrdio – razão é que amo & odeio São Paulo ao mesmo tempo, os dois sentimentos convivendo maldita e abençoadamente dentro de mim - partes inseparáveis e constituintes deste universo - dilacerada estou eu entre os opostos. Problema meu.
Já o resto é periferia.
*A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), A Ponte das Estrelas (1990), Toda Prosa (2002 - Esgotado),(2003,Ateliê Editorial, reedição), Caim (Record, 2006), Toda Prosa II - Obra Escolhida Diana Caçadora/Tango Fantasma (Record, 2008). É traduzida na Holanda, Bulgária, Hungria, Estados Unidos, Alemanha, Suiça, Argentina e Espanha (catalão e galaico-português). Dois de seus contos - O Vampiro da Alameda Casabranca e- foram incluídos nos 100 Melhores Contos Brasileiros do Século, sendo que Hell's Angel está também entre os 100 Melhores Contos Eróticos Universais. Hell's Angel Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, é pesquisadora de literatura, jornalista e curadora de Literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.