sábado, 26 de novembro de 2011

Tortura, Nunca mais!



Por José Amaral em  mundolusiada


Anos atrás, um velho militante sindical metroviário, Sr. Amaro, emprestou-me um livro que dizia ser dos seus prediletos. Obra que desejava tivesse maior divulgação para o grande público. Era um livro do dominicano mineiro Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, e se intitulava “Batismo de Sangue”. Narrava a história de outro dominicano, Frei Tito de Alencar Lima, ocorrida em um período muito triste da vida brasileira, isto é, a ditadura militar, que foi imposta sobre o país a partir de 1964. Vinte anos de opressão política que terminou somente em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves e sua substituição pelo seu vice, José Sarney, após doença e falecimento do mineiro. O caso é que, durante o mais selvagem momento dos ‘anos de chumbo’ vividos, Frei Tito acabou sendo capturado e violentado brutalmente pela repressão. Frei Betto descreve este calvário iniciado em 1969 para Frei Tito, acusado de subversão à ordem pelos militares. Ele ficou retido na capital paulista, no Presídio Tiradentes, DOPS, de onde foi retirado em 1970 para o quartel da Rua Tutóia, levado pelo capitão Maurício Lopes Lima que disse, então, a famosa frase: “agora você vai conhecer a sucursal do inferno”. Estava dada a senha.
Conforme a obra, Fernando Gabeira, outro prisioneiro do local, testemunhou o sacrifício do religioso. Queriam informações sobre o congresso da UNE em Ibiúna, 1968, do qual ele negava saber detalhes especiais. Foi por isso dependurado no pau-de-arara e sentado na ‘cadeira-do-dragão’ – feita de chapas metálicas e fios -; levou choques elétricos na cabeça, nos tendões dos pés e nos ouvidos durante três dias. Seis assistentes queimaram pontas de cigarro em seu corpo. Fizeram-no passar pelo ‘corredor polonês’. Recebeu pauladas nas costas, no peito e nas pernas. Suas mãos apanharam de palmatória. Vestiram-no com paramentos e o fizeram tomar descargas elétricas na boca, o que chamaram de ‘hóstia sagrada’. Os militares juravam que se ele sobrevivesse, nunca mais iria esquecer-se daqueles dias de valentia, resistindo a ‘entregar os companheiros’. Frei Tito escreveu, então, em sua Bíblia no cárcere: “É preferível morrer do que perder a vida”. Cortou seu pulso com uma gilete. Mas, foi salvo a tempo.
Em dezembro de 1970 ele foi liberado. Trocado junto de outros prisioneiros pelo embaixador suíço, seqüestrado pelos guerrilheiros da VPR. Frei Tito foi para o Chile, desembarcando em Santiago. Sua mudança para Roma foi negada pelo Colégio Pio Brasileiro, uma referência de formação da elite religiosa, por sua fama de ‘terrorista’. Dirigiu-se para Paris, rumo ao Convento de Saint Jacques, que lutou pela Resistência Francesa na II Guerra Mundial. Dali ele transferiu-se para o Convento de I’Arbresle, nas cercanias de Lyon, onde passava os dias pensativo, ausente, como se tornou quotidianamente desde que deixara o Brasil. Era um homem arruinado psiquicamente. Ouvia continuamente a voz rouca do delegado Sergio Paranhos Fleury, seu algoz, e o vislumbrava em cafés e boulevares, fantasmagórico, onipresente, perseguindo-o continuamente.
Médicos recomendaram que fizesse tratamento com trabalhos manuais, coisas menos teóricas e intimistas. Foi para Villefranche-sur-Saône e alugou um pequeno cômodo numa pensão de imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas ele pagava com o próprio salário de horticultor, atividade que começara a desenvolver. Em seu caderno de poemas escreveu “São noites de silêncio / Vozes que clamam num espaço infinito / Um silêncio do homem e um silêncio de Deus”. Um indivíduo massacrado e perdido em seu abismo pessoal.
Em um sábado, dia 10 de agosto de 1974, frei Roland Ducret foi visitá-lo. Bateu à porta de seu quarto, na zona rural. Ninguém respondeu. Nada se movia. Um estranho cenário. E ali estava a tragédia escancarada: debaixo da copa de um álamo, balançava o corpo de Frei Tito. Ele tinha 28 anos quando morreu e alcançou a verdadeira liberdade. Em 1983 seus restos mortais voltaram ao Brasil. Foram descansar, definitivamente, em sua cidade natal, Fortaleza.
A ditadura brasileira foi o coroamento de um processo que já veio se delineando desde o suicídio de Getúlio Vargas, passando pelas tentativas de golpes contra JK, na tumultuada experiência de Jânio Quadros até então atingir a efetivação do caso contra João Goulart, ex-ministro de Getúlio e então presidente constitucional. Há poucos dias, inclusive, documentos obtidos pelo jornal Pagina12 revelam com clareza que o Brasil serviu como cérebro logístico da repressão na América Latina. Militares brasileiros espionaram, prenderam e entregaram cidadãos de outros países para “ditaduras amigas”. Políticos, sindicalistas, estudantes, religiosos, jornalistas entre outros, foram espreitados, presos, torturados e muitas vezes desaparecidos nessa época.
Todos estes elementos fazem parte de uma lembrança que jamais poderá ser ocultada e que agora teve, aprovada no Congresso, a ‘Comissão da Verdade’ para investigar violações dos direitos humanos cometidas por razões políticas no país entre 1946 e 1988. Com sua instalação haverá o prazo de dois anos para que seja redigido o documento final da pesquisa que se dará através de requisição de documentos em órgãos públicos e também convocação de testemunhas. Não terá o direito de punir, contudo, determinará culpados e razões de seus atos, clareando a história e dando ‘nomes aos bois’. E não é um mero revanchismo. É o direito legítimo das famílias em relação ao governo, por exemplo, de saberem onde foram mortos seus entes queridos, como e em que circunstâncias aconteceram seus desaparecimentos?
Memórias de Frei Tito podem ser acessadas em http://www.adital.com.br/freitito/por/index.html. Elementos de luta contra a tortura e a Comissão de Justiça e Paz podem ser encontrados em http://www.torturanuncamais-sp.org/site/ e http://www.cbjp.org.br/.
Como havia me dito anos atrás o sr. Amaro, que me emprestou o livro de Frei Betto, expondo os eventos acima, a história não pode ser distorcida e ocultada. Todos precisam ter conhecimento de sua veracidade. E é o mais puro fato. Crimes e violência devem ser combatidos e denunciados, não encobertos e muito menos perdoados, especialmente sendo cometidos por agentes de um estado democrático republicano. Sucesso à Comissão da Verdade. Força e determinação. Pelos direitos plenos aos cidadãos. Tortura, nunca mais!  São Paulo, 24 de novembro de 2011
Prof. José de Almeida Amaral Júnior
Professor universitário em Ciências Sociais; Economista, pós-graduado em Sociologia e mestre em Políticas de Educação; Colunista do Jornal Mundo Lusíada On Line, do Jornal Cantareira e da Rádio 9 de Julho AM 1600 Khz de São Paulo.